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Paulo Castro & Advogados 

Protegendo seus direitos com integridade e dedicação

Foto do escritorPAULO CASTRO

Retroatividade do ANPP. Possibilidade. Norma Mista. STF

Ag.Reg. no Habeas Corpus 217.275 São Paulo




DECISÃO: Trata-se de agravo regimental (eDOC 19) interposto contra decisão por meio da qual neguei seguimento ao habeas corpus, em razão da inadmissibilidade de impetração substitutiva de revisão criminal (eDOC 18).


Nas razões recursais, alega-se, em suma, que “esta Corte já decidiu admitindo a possibilidade de propositura do Acordo de não Persecução Penal em processos em andamento”.


Após detida análise dos autos e diante dos fundamentos apresentados no agravo regimental, constato assistir razão ao agravante, razão pela qual, com fulcro na permissão contida no art. 317, § 2º, do RISTF, reconsidero a decisão agravada e passo à reanálise da impetração.

É o relatório. Decido.


No caso em exame, a despeito do óbice consistente na vedação de impetrações substitutivas de revisão criminal, impõe-se a concessão da ordem de ofício.

A Lei 13.964/2019, conhecida como Pacote Anticrime, introduziu ao Código de Processo Penal o instituto do Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), por meio do art. 28-A, que assim dispõe:


Art. 28-A. Não sendo caso de arquivamento e tendo o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal sem violência ou grave ameaça e com pena mínima inferior a 4 (quatro) anos, o Ministério Público poderá propor acordo de não persecução penal, desde que necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime, mediante as seguintes condições ajustadas cumulativa e alternativamente:


I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto naimpossibilidade de fazê-lo;

II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicadospelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime;

III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicaspor período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal)art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal);

IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nostermos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal),art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou

V - cumprir, por prazo determinado, outra condiçãoindicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada.

§ 1º Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto.

§ 2º O disposto no caput deste artigo não se aplica nas seguintes hipóteses:

I - se for cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei;

II - se o investigado for reincidente ou se houver elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas;

III - ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anosanteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e

IV - nos crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor.

§ 3º O acordo de não persecução penal será formalizado por escrito e será firmado pelo membro do Ministério Público, pelo investigado e por seu defensor.

§ 4º Para a homologação do acordo de não persecução penal, será realizada audiência na qual o juiz deverá verificar a sua voluntariedade, por meio da oitiva do investigado na presença do seu defensor, e sua legalidade.

§ 5º Se o juiz considerar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições dispostas no acordo de não persecução penal, devolverá os autos ao Ministério Público para que seja reformulada a proposta de acordo, com concordância do investigado e seu defensor.

§ 6º Homologado judicialmente o acordo de não persecução penal, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para que inicie sua execução perante o juízo de execução penal.

§ 7º O juiz poderá recusar homologação à proposta que não atender aos requisitos legais ou quando não for realizada a adequação a que se refere o § 5º deste artigo.

§ 8º Recusada a homologação, o juiz devolverá os autos ao Ministério Público para a análise da necessidade de complementação das investigações ou o oferecimento da denúncia.

§ 9º A vítima será intimada da homologação do acordo de não persecução penal e de seu descumprimento.

§ 10. Descumpridas quaisquer das condições estipuladas no acordo de não persecução penal, o Ministério Público deverá comunicar ao juízo, para fins de sua rescisão e posterior oferecimento de denúncia.

§ 11. O descumprimento do acordo de não persecução penal pelo investigado também poderá ser utilizado pelo Ministério Público como justificativa para o eventual não oferecimento de suspensão condicional do processo.

§ 12. A celebração e o cumprimento do acordo de não persecução penal não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º deste artigo.

§ 13. Cumprido integralmente o acordo de não persecução penal, o juízo competente decretará a extinção de punibilidade.

§ 14. No caso de recusa, por parte do Ministério Público, em propor o acordo de não persecução penal, o investigado poderá requerer a remessa dos autos a órgão superior, na forma do art. 28 deste Código.



Trata-se de uma inovação no ordenamento jurídico brasileiro que, assim como a transação penal e a suspensão condicional do processo, privilegia a justiça consensual e, certamente, impactará de forma positiva no sistema de justiça penal, na medida em que mitiga o princípio da indisponibilidade da ação penal nos casos de crimes de médio potencial ofensivo, quando atendidos os requisitos legais. Além de contribuir com o desafogamento do Poder Judiciário e com a economia processual, esse mecanismo negocial garante a recomposição do dano provocado à vítima e à sociedade.


Desde a vigência da Lei 13.964/2019 (23.01.2020), esta Corte tem recebido inúmeros habeas corpus e recursos ordinários em habeas corpus por meio dos quais o jurisdicionado requer a aplicação do art. 28-A do CPP, argumentando, como no presente caso, que a natureza mista da norma em comento (material-processual) impõe sua incidência retroativa, em obediência à garantia prevista no art. 5º, XL, da Constituição Federal.


Diante da envergadura da matéria e da multiplicidade de demandas, o eminente Ministro Gilmar Mendes, em boa hora, afetou o tema ao Pleno, nos autos do HC 185.913/DF. Não obstante, sem prejuízo


de oportuna análise verticalizada da matéria pelo colegiado maior desta Suprema Corte, levei a questão ao escrutínio da Segunda Turma, no HC 220.249/SP (Sessão virtual de 09.12.2022 a 16.12.2022), por entender que a natureza da ação e suas implicações jurídicas exigem uma prestação jurisdicional célere, a fim de não esvaziar o próprio direito ou a pretensão punitiva estatal (seja pelo cumprimento integral da pena, seja pelo reconhecimento da prescrição).


Ao proclamar o voto no HC 220.249/SP, inicialmente esclareci que, em temática similar à dos autos (em que se pretendia a aplicação retroativa do art. 171, § 5º, do CP, com a redação introduzida pela Lei 13.964/2019), a Segunda Turma reconheceu a natureza mista da norma e assentou que tais preceitos, quando favoráveis ao réu, devem ser aplicados de maneira retroativa em relação a fatos pretéritos enquanto a ação penal estiver em curso, nos termos do que dispõe o art. 5º, XL, da CF (HC 180.421/SP, de minha relatoria, Segunda Turma, DJe 06.12.2021).


Como ressaltei naquela ocasião, a expressão “lei penal” contida no art. 5º, inciso XL, da Constituição Federal deve ser interpretada como gênero. Dessa forma, a expressão deve abranger tanto leis penais em sentido estrito quanto leis penais processuais que disciplinam o exercício da pretensão punitiva do Estado (como, por exemplo, aquelas relativas ao direito de queixa ou de representação, à prescrição ou à decadência, ao perdão ou à perempção, a causas de extinção de punibilidade) ou que interferem diretamente no status libertatis do indivíduo (como, por exemplo, admissão de fiança, alteração das hipóteses de cabimento de prisão cautelar). Essas normas, quando beneficiarem o réu, devem retroagir, nos termos do dispositivo constitucional em comento.


A meu ver, ao acordo de não persecução penal deve ser aplicada idêntica interpretação, pois o caráter híbrido da norma (materialprocessual) é evidente. Embora inserida no Código de Processo Penal, consiste em medida despenalizadora, que atinge a própria pretensão punitiva estatal. Conforme explicita a lei, o cumprimento integral do acordo importa extinção da punibilidade, sem caracterizar maus antecedentes ou reincidência.


Nesse contexto, como bem pondera Marcos Paulo Dutra Santos, ainda que já tenha sido apresentada a denúncia e, consequentemente, esteja preclusa a primeira finalidade processual do ANPP (evitar a instauração da ação criminal), persiste hígido o escopo material do instituto negocial, qual seja: a conservação do estado de inocência e da liberdade.


A esse respeito esclarece o autor que “em sendo novatio legis in mellius, a retroação aos processos em curso é mandatória por imposição constitucional (art. 5º, XL, da CRFB/88), não lhe sendo oponível o ato jurídico perfeito”. E ainda, “o ANPP, à semelhança da transação penal, incide sobre as instruções criminais em curso, independentemente de a denúncia ter sido, ou não, recebida, seja por força da retroatividade da Lei nº 13.964/19, seja em razão da desclassificação da imputação, pelo juízo processante ou em sede recursal, para outra que comporte o benefício.”(SANTOS, Marcos Paulo D. Comentários ao Pacote Anticrime. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 207 e 208, respectivamente).


Com efeito, o recebimento da denúncia ou mesmo a prolação da sentença não esvaziam a finalidade do ANPP, pois a sua celebração evita prisão cautelar, condenação criminal e seus efeitos (cumprimento de pena, reincidência, maus antecedentes, etc) e o próprio processo (com todas as fases recursais). Tais marcos processuais não excepcionam a garantia constitucional de retroatividade da lei mais benéfica, mesmo sob o argumento da utilidade do instituto para o órgão de acusação. Ora, o critério da utilidade deve ser visto sob a óptica de todo o sistema de justiça criminal e dos atores envolvidos, incluindo aqui a vítima e o acusado.


Nessa linha, colho lição de Guilherme de Souza Nucci:


“O acordo de não persecução penal, introduzido pela Lei 13.964/2019, é uma norma processual de natureza mista, pois evita a propositura de ação penal e, com isso, permite a extinção da punibilidade. Assim sendo, temos sustentado que essa espécie de norma processual penal deve retroagir no tempo, tal como a norma penal benéfica, atingindo todos os processos em andamento, desde que não tenha havido trânsito em julgado.Entretanto, a tendência da jurisprudência, por ora, tem sido não acolher a retroatividade benéfica dessa norma do art. 28-A do CPP; defende-se que, havendo o recebimento da denúncia ou queixa, está-se diante de ato jurídico perfeito, não podendo ser alterada a situação. Esse entendimento, na realidade, deixa de reconhecer a força da norma processual penal de natureza mista.” (NUCCI, Guilherme de S. Manual de Processo Penal. São Paulo: Grupo GEN, 2022, p. 234 grifei).


Na mesma direção, colaciono o ensinamento de Aury Lopes Junior:


“Quanto à aplicação no tempo, trata-se de norma mais benigna que deverá retroagir. Como explicamos no início dessa obra, ao tratar da lei processual no tempo (para onde remetemos o leitor), na concepção clássica, essa seria uma norma mista, com prevalentes caracteres penais (pois uma vez cumprido, extingue a punibilidade) que retroagem para beneficiar o réu. Portanto, pode ser aplicado aos processos nascidos antes da vigência da Lei n. 13.964 e pode ser oferecido até o trânsito em julgado.” (LOPES JUNIOR, Aury. DIREITO PROCESSUAL PENAL.São Paulo: Saraiva, 2021, p. 86).



Cito, ainda, precedentes da lavra do eminente Ministro Ricardo Lewandowski, em que, baseado no entendimento firmado no HC 180.421/SP quanto à retroação da Lei 13.964/2019, concedeu a ordem para determinar a remessa dos autos a órgão superior do Ministério Público, a fim de verificar a possibilidade de celebração do ANPP: HC 221.969, DJe 07.11.2022; HC 221.756, DJe 28.10.2022; HC 214.408, DJe 05.10.2022; DJe 221.878, DJe 09.11.2022; HC 213.966 no AgRg, DJe 05.10.2022; HC 218.725, DJe 06.10.2022.


No âmbito do Ministério Público Federal, também foi firmada orientação nesse mesmo sentido. Vejamos o item 8 da Orientação Conjunta 3/2018 da 2ª, 4ª e 5ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF, revisada e ampliada após a edição da Lei 13.964/2019:


“8 Admite-se o oferecimento de acordos de não persecução penal no curso da ação penal, podendo ser dispensada, nessa hipótese, a instauração de PA, caso a negociação seja realizada nos próprios autos do processo. Nessa hipótese, deverá ser requerido ao juízo o sobrestamento da ação penal”.



Assim também dispõe o Enunciado n. 98 da 2ª Câmara de Coordenação e Revisão do MPF:


“É cabível o oferecimento de acordo de não persecução penal no curso da ação penal, isto é, antes do trânsito em julgado, desde que preenchidos os requisitos legais, devendo o integrante do MPF oficiante assegurar seja oferecida ao acusado a oportunidade de confessar formal e circunstancialmente a prática da infração penal, nos termos do art. 28-A do CPP, quando se tratar de processos que estavam em curso quando da introdução da Lei nº 13.964/2019, conforme precedentes, podendo o membro oficiante analisar se eventual sentença ou acórdão proferido nos autos configura medida mais adequada e proporcional ao deslinde dos fatos do que a celebração do ANPP. Não é cabível o acordo para processos com sentença ou acórdão após a vigência da Lei nº 13.964/2019, uma vez oferecido o ANPP e recusado pela defesa, quando haverá preclusão”. (Enunciado alterado na 187ª Sessão de Coordenação, de 31/08/2020).


2. No presente caso, apesar de já terem sido proferidos a sentença e o acórdão condenatórios, e mesmo a despeito de haver um título judicial transitado em julgado, o feito ainda estava em curso quando a Lei 13.964/2019 entrou em vigor. Desse modo, imperativo é o reconhecimento do efeito retroativo do art. 28-A do CPP.



3. Ante o exposto, com amparo nos arts. 192 e. 317, § 2º, do RISTF, reconsidero a decisão agravada para reconhecer a retroatividade do art. 28-A do CPP e, mesmo deixando de conhecer da impetração, conceder a ordem de ofício, a fim de oportunizar ao Ministério Público, em primeira instância, a propositura do Acordo de Não Persecução Penal, caso preenchidos os requisitos.


Comunique-se ao Juízo de origem, ao qual incumbirá viabilizar o cumprimento da presente decisão.


Outrossim, comunique-se ao TJSP e ao STJ, para ciência.


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