Usando toucas ninja, que deixam apenas os olhos de fora, dois indivíduos armados tentam roubar a carga de um caminhão. Um dos condutores do veículo, após assistir às imagens de outro roubo, declara não ter dúvidas sobre um dos criminosos: pelos olhos, e pelo fato de usar roupa social, é a mesma pessoa. A certeza aumenta quando ele ouve uma gravação com a voz do suspeito. Em juízo, sublinha sua convicção ao dizer que reconheceu, em fotos apresentadas pela polícia, uma tatuagem que o assaltante teria no braço – embora não houvesse mencionado esse detalhe no inquérito e o indivíduo que aparece no vídeo do outro roubo estivesse com os braços cobertos. O suspeito assim identificado é condenado a mais de cinco anos pela tentativa de roubo da carga.
Ao julgar o Habeas Corpus 680.416, em setembro de 2021, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca considerou o reconhecimento "questionável" e, na falta de outras provas que sustentassem a condenação, absolveu o réu – providência indicada pelo próprio Ministério Público Federal.
A decisão é uma das quase 90 já proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) desde que a Sexta Turma, reformulando a jurisprudência até então predominante, assentou o entendimento de que a inobservância do artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP) invalida o reconhecimento do acusado feito na polícia, não podendo servir de base para a sua condenação, nem mesmo se for confirmado na fase judicial. Isso ocorreu em 27 de outubro de 2020, no julgamento do HC 598.886.
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Daquela data até dezembro do ano passado, houve pelo menos 28 acórdãos das duas turmas de direito penal do tribunal e 61 decisões monocráticas que absolveram o réu ou revogaram a prisão preventiva em razão de graves dúvidas sobre o reconhecimento feito em desacordo com as exigências do CPP, as quais – nas palavras do ministro Rogerio Schietti Cruz, relator do HC 598.886 – "constituem garantia mínima para quem se vê na condição de suspeito da prática de um crime". Os números constam de um levantamento produzido pelo gabinete do ministro.
Quase um ano depois daquele julgamento, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) instituiu, em setembro de 2021, um grupo de trabalho com o objetivo de propor nova regulamentação para o reconhecimento pessoal em processos penais. Em janeiro, o CNJ lançou uma chamada pública para a seleção de artigos científicos sobre o tema, que serão publicados em coletânea digital e poderão subsidiar os estudos do grupo de trabalho.
Prendam o Messi!
O comerciante chega ao bar de manhã e percebe que houve um furto. Examinando a gravação da câmera de segurança, verifica que o ladrão usava camiseta do Barcelona com o número 10 nas costas. Informada, a polícia faz rondas e prende um indivíduo com a camisa do time espanhol, com o mesmo número ainda utilizado naquele janeiro de 2021 pelo craque Lionel Messi. Os bens furtados não são encontrados, mas o suspeito – que diz ter achado a camiseta jogada na rua – é condenado, com base na roupa e no porte físico.
No HC 686.317, o desembargador convocado Jesuíno Rissato acompanhou o parecer do Ministério Público Federal e declarou a absolvição do réu, destacando que a decisão condenatória "ou se baseou em reconhecimento de uma camiseta ou se fundou em reconhecimento indireto de imagens de vídeo (não periciadas e sobre fatos por ninguém presenciados)".
Até o julgamento do HC 598.886, prevalecia a tese de que a validade do reconhecimento do autor de um crime não dependia, obrigatoriamente, do procedimento do artigo 226 do CPP, o qual determina que o suspeito – sempre que possível – seja colocado ao lado de outras pessoas com alguma semelhança, para que a vítima ou testemunha o aponte. Entendia-se, no STJ e em outros tribunais, que o dispositivo legal trazia recomendações para as autoridades, e não uma regra indispensável.
As notícias – cada vez mais frequentes – de prisões injustas motivadas por erros de reconhecimento influenciaram o tribunal a adotar uma posição mais condizente com a natureza falível da memória humana. "O valor probatório do reconhecimento deve ser visto com muito cuidado, justamente em razão da sua alta suscetibilidade de falhas e distorções. Por possuir, quase sempre, um alto grau de subjetividade e de falibilidade é que esse meio de prova deve ser visto com reserva", declarou Rogerio Schietti.
Condenado com 70% de certeza
Após ter sido roubada dentro de uma pizzaria, a vítima olha a foto apresentada por um vizinho como sendo a do motorista imprudente que causou um acidente fatal. Reconhece o assaltante. Vai à delegacia e, diante de uma foto do suspeito, reafirma suas impressões. Mais de três anos depois, estando frente a frente com o acusado na audiência judicial, declara que ele é 70% semelhante àquele homem de capuz e boné que lhe apontou uma arma na pizzaria.
Para o ministro Ribeiro Dantas, relator do Recurso Especial 1.914.998, a condenação do réu foi amparada unicamente no reconhecimento fotográfico feito na delegacia, sem a observância das disposições do artigo 226 do CPP – prova que não se confirmou em juízo, pois a vítima disse não ter convicção para identificar o acusado, como admitido pelo próprio acórdão que reformou a sentença absolutória.
Segundo o Ministro Schietti, o reconhecimento por meio de fotos é especialmente problemático quando se faz pela simples apresentação, à vítima ou testemunha, de imagens do suspeito previamente selecionadas em álbuns policiais ou redes sociais – uma prática comum nas delegacias.
"Mesmo quando se procura seguir, com adaptações, o procedimento indicado no CPP para o reconhecimento presencial, não há como ignorar que o caráter estático, a qualidade da foto, a ausência de expressões e trejeitos corporais, e a quase sempre visualização apenas do busto do suspeito podem comprometer a idoneidade e a confiabilidade do ato", acrescentou o magistrado.
De acordo com as diretrizes fixadas pela Sexta Turma no HC 598.886, o reconhecimento a partir de fotos é possível, mas tem de seguir o mesmo procedimento do reconhecimento pessoal.
O acórdão do leading case esclareceu ainda que o ato de reconhecimento até pode ser realizado em juízo, "desde que observado o devido procedimento probatório", assim como pode o juiz "se convencer da autoria delitiva a partir do exame de outras provas que não guardem relação de causa e efeito com o ato viciado de reconhecimento".
Após a mudança da jurisprudência, a Sexta Turma, no HC 633.659 (julgado em março de 2021), manteve um acórdão condenatório por verificar que o reconhecimento fotográfico feito na delegacia foi acompanhado de outras provas, como depoimentos em juízo e a apreensão de parte do produto do roubo na casa do acusado.
Fotos no jornal e no Facebook
Sob a mira de arma de fogo, o empregado do mercado entrega dinheiro e cheques aos dois assaltantes. As imagens das câmeras de segurança não permitem identificar os criminosos. Poucos dias depois, a polícia prende os suspeitos de roubo a um posto de gasolina. Lendo a notícia deste segundo caso no jornal, o empregado reconhece um dos assaltantes do mercado, o qual estava com o rosto descoberto na ocasião. Ele entra no Facebook, confere fotos do indivíduo preso e vai à delegacia para assinar um termo de reconhecimento, com base no qual o suspeito é condenado a mais de sete anos.
"A certeza sobre a autoria do delito encontra-se fundada unicamente em questionável reconhecimento do acusado, que não seguiu os ditames do artigo 226 do Código de Processo Penal", observou o ministro Joel Ilan Paciornik, relator do HC 634.582, ao determinar a absolvição do acusado.
No julgamento do HC 652.284, o ministro Reynaldo Soares da Fonseca registrou que "o reconhecimento fotográfico serve como prova apenas inicial e deve ser ratificado por reconhecimento presencial, assim que possível".
Segundo ele, "no caso de uma ou de ambas as formas de reconhecimento terem sido efetuadas, em sede inquisitorial, sem a observância (parcial ou total) dos preceitos do artigo 226 do CPP e sem justificativa idônea para o descumprimento do rito processual, o reconhecimento falho se revelará incapaz de permitir a condenação, como regra objetiva e de critério de prova, sem corroboração independente e idônea do restante do conjunto probatório, produzido na fase judicial".
Uma pesquisa da Defensoria Pública do Rio de Janeiro – mencionada por Schietti – identificou que, em cinco anos, entre 2014 e 2019, 53 pessoas foram acusadas indevidamente no estado a partir de reconhecimento fotográfico. Todas acabaram absolvidas, mas 50 delas chegaram a ser presas preventivamente. Apenas 20% eram brancas – o que, para o magistrado, "sugere algo até intuitivo, o racismo estrutural".
Outra pesquisa, produzida por iniciativa da Comissão Criminal do Colégio Nacional dos Defensores Públicos-Gerais (Condege), reuniu dados apurados por defensores de dez estados, relativamente ao período 2012-2020, e revelou a ocorrência de pelo menos 90 prisões injustas motivadas por reconhecimento fotográfico (a maioria no Rio de Janeiro). Dos 79 casos com informação sobre cor de pele, 81% eram de pretos ou pardos.
O papel da polícia, do MP e dos magistrados
No voto que mudou a jurisprudência do STJ sobre o tema, Schietti apontou que a organização norte-americana Innocence Project, criada por advogados para buscar a reparação de erros judiciais, calcula que 75% das condenações de inocentes sejam resultado de reconhecimento falho por parte de vítimas ou testemunhas. "Em 38% dos casos em que houve esse erro, várias testemunhas oculares identificaram incorretamente o mesmo suspeito inocente", acrescentou o relator.
Ele ressaltou ainda que, segundo o National Registry of Exonerations – maior banco de dados dos Estados Unidos sobre reversão de erros judiciais –, o reconhecimento falho de suspeitos é a terceira causa mais frequente da condenação de inocentes (29%).
No entendimento do ministro, a iniciativa para corrigir as distorções no reconhecimento de pessoas deve partir da própria polícia, cabendo ao Ministério Público – fiscal da lei e órgão de controle externo da atividade policial – zelar pela correta aplicação das normas processuais.
Quanto aos juízes e tribunais, Schietti considerou urgente que adotem uma nova compreensão sobre as irregularidades no ato de reconhecimento e as suas consequências, pois a não observância dos procedimentos legais "acaba por permitir a perpetuação desse foco de erros judiciários e, consequentemente, de graves injustiças".
Um desdobramento prático dessa compreensão se deu no último dia 7 de janeiro, quando o desembargador Marcus Henrique Pinto Basílio, segundo vice-presidente do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, invocou os parâmetros definidos no HC 598.886 para recomendar aos magistrados estaduais que reavaliem, com urgência, os decretos de prisão preventiva baseados somente em reconhecimento fotográfico realizado em desconformidade com o artigo 226 do CPP – notícia comemorada pela Associação Nacional dos Peritos Criminais Federais (APCF).
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